Breve história das minhas preocupações ecológicas
E a importância de ter companhia para pensar
Este texto estava pronto para ser mandado e travou, por isso o atraso. Estou achando difícil soltar a newsletter seguindo a regra de não editar demais, mas vamos lá!
Esta semana estava mexendo na estante de casa. Abri A Vingança de Gaia de James Lovelock e vi a data anotada: dezembro de 2006. Faz todos esses anos que eu me preocupo com esse tema (difícil nomeá-lo: crise? Ambiental? Civilizatória?), e por quase todo esse tempo eu me senti sozinha. Não sabia onde estavam as outras pessoas que estão pensando e escrevendo a respeito. Lembro do dia, naquele mesmo ano, em que a capa do Estadão era o relatório do IPCC, o painel intergovernamental sobre mudanças climáticas, alertando sobre os riscos que estávamos correndo. Ninguém parecia se importar além de mim. Em todo caso, ninguém com quem eu convivia.
Lá naquela época, em 2006, eu queria escrever um livro que se passasse num futuro onde as pessoas plantavam a própria comida e quase nenhum avião cruzava o céu. Seria pela voz de uma criança, cujos pais haviam vivido nos tempos da queima de combustíveis fósseis. Eu queria que fosse uma história de esperança, mas não sabia como. Desisti. Aquilo parecia tolo, impossível.
No trabalho, eu fazia análise de pesquisa de mercado para grandes marcas que vendiam doces e serviços de telefonia e internet. Meu estômago sediava minha inquietude e não me deixava dormir, queimando. Uma amiga e eu organizamos ateliês na empresa em que trabalhávamos para incentivar as pessoas a reduzirem, reutilizarem e reciclarem. Meu marido e eu recebíamos aquele olhar misturando preguiça e estranheza quando levávamos nossos tupperwares pro supermercado e pedíamos para colocar o queijo fatiado ali dentro, sem os plastiquinhos que se usa para separar as camadas. Pensei em largar o emprego e ir estudar mercados de carbono, porque, 17 anos atrás, essa parecia a única saída. Ainda que eu desconfiasse dela, eu não ousava, não conseguia sair dessa lógica de mercado.
Aí vim para a Suíça pelo trabalho do meu marido e achei que ia poder começar do zero. Queria um emprego com sentido, na ONU, para ajudar a salvar o mundo (só isso). Decidi fazer um mestrado em Estudos do Desenvolvimento, para me tornar empregável aqui e aprender o que eu precisava para mudar o mundo, e depressa percebi que o curso não ia acalmar minha inquietudo, só piorar.
Fiz todas as matérias que tinham “meio ambiente” ou “ecologia” no nome, inclusive aquela que foi o golpe final nas minhas expectativas, Mudanças Climáticas no Direito Internacional. Todos os alunos dessa aula eram advogados de formação, menos eu e um americano, que era arquiteto. O professor era jovem e paciente, e gostava de provocar debates acalorados, o Jorge Viñualez. Tínhamos que escolher um tema para a dissertação do semestre, o meu era dizer qual era o fórum mais adequado para entrar em um acordo climático que funcionasse. Basicamente se tratava de defender a COP, que estava muito desacreditada antes do Acordo de Paris, como o melhor espaço de negociação, frete aos diversos fóruns regionais voltados para comércio de “energia limpa”. Fiz uma defesa apaixonada da COP, sentindo que era como tentar dar um salto sem ter chão debaixo dos pés onde dar impulso: não havia nada, em lugar algum, que pudesse obrigar os países a reduzir emissões. Estávamos condenados.
Também me incomodava demais a maneira como as empresas que estavam fazendo alguma coisa se propunham a compensar emissões. Por exemplo, as companhias aéreas passaram a oferecer a opção de pagar uma pequena taxa ao comprar uma passagem, para compensar as emissões associadas a sua viagem. Num exemplo que eu vi, esse dinheiro iria para um projeto que substituía fogões a lenha por outra alternativa mais “ecológica” em algum país da África. Parecia uma piada de mau gosto. Então os fogões a lenha eram o problema? Claro que não, era só uma oportunidade para movimentar o mercado duas vezes: com a venda dos bilhetes de avião e com a substituição dos fogões por outra coisa cuja fabricação com certeza havia consumido recursos naturais, talvez a milhares de quilômetros dali. Pode até ser que os fogões novos fossem bem vindos para as mulheres (que provavelmente eram quem tinha que coletar a lenha), mas não fazia sentido algum apresentar aquilo como algo que compensasse as emissões de uma viagem de avião. Levando em conta o processo como um todo, eram emissões a mais, não a menos. Esse era o rei desfilando nu que ninguém queria admitir — ninguém quer ver, até hoje.
Eu continuava escrevendo, mas tudo parecia impossível. O próprio ato de escrever, embora necessário, parecia deslocado. Eu queria escrever sobre como era importante ter um caiaque se você mora numa área alagável de São Paulo. A água pode subir. Ter um plano de emergência, saber para onde ir caso fosse necessário evacuar a casa, a cidade. Vi daqui de longe o impensável começar a acontecer (ou começar a ser noticiado) quando as chuvas de 2011 que mataram mais de 900 pessoas na região de Nova Friburgo.
Nada, não havia nada sob os nossos pés que pudéssemos tomar por sempre sólido. Tudo poderia ruir. E dava medo falar a respeito.
Consegui um estágio na IUCN, a união internacional para conservação da natureza e fui muito feliz por dois meses pegando o trem até lá, caminhando pelas ruas tranquilas de Gland, uma pequenina cidade a 30 quilômetros de Genebra onde a IUCN construiu sua sede, um prédio com bastante luz natural e alta eficiência energética. Eu poderia viver daquele jeito, tomar todo dia o trem que segue paralelo ao lago, às plantações de maçã e de canola, passar o dia atualizando o site com notícias sobre projetos ou eventos e publicando fotos de animais no Twitter. Quando faltava uma semana para o estágio acabar, a diretora-geral convocou uma reunião no auditório e anunciou um corte drástico de orçamento para o ano seguinte. No espaço de horas, todos os funcionários do departamento de comunicação que tinham cargos acima de iniciante foram demitidos. Inclusive a minha chefe, que tinha dado a entender que eu teria oportunidade de continuar ali como temporária.
Primeiro a decepção com as negociações pelo clima, agora o desmonte da estrutura de comunicação de uma das maiores organizações ambientais do mundo. Parecia haver um muro em qualquer direção que eu olhasse.
Então eu me recolhi e passei anos de solidão e tristeza enquanto cuidava da minha filha bebê. Eu não sei bem como atravessei aqueles tempos de exaustão constante e muitas dúvidas, mas a maternidade foi me ensinando que as coisas não têm solução como uma chave liga-desliga, que elas são mais sobre continuidades que se transformam. A maternidade me ensina a navegar o território do possível, da vida.
E aí me veio esse presente, que é o Filamentos, o grupo de discussão sobre ecologia e literatura mediado pela
. Lá, não discutimos como reduzir as emissões de gases de efeito estufa, mas olhamos para o problema sob outros ângulos, exploramos narrativas construídas a partir de lugares diversos. O problema continua sendo enorme, mas estamos pensando sobre ele, e fazendo perguntas sobre a maneira de pensar sobre ele. Como diz a Donna Haraway neste mantra:Importa quais pensamentos pensam pensamentos.
Importa quais conhecimentos conhecem conhecimentos.
Importa quais relações relacionam relações.
Importa quais mundos mundificam mundos.
Importa quais histórias contam histórias.
(Donna Haraway, Ficar com o problema: Antropoceno, Capitaloceno, Chthuluceno (artigo que faz parte da coletânea Antropoceno ou Capitaloceno, da Editora Elefante)
Nossos encontros são curtos demais para o tanto que eu queria aprender com os colegas, e para conversar sobre como as leituras do programa nos mobilizam. Mas é um lugar. É um espaço onde quase infinitas possibilidades se abrem, e onde não estou sozinha.
Também estou aprendendo muito sobre uma área da literatura contemporânea que eu ignorava. Descobri que existe espaço para histórias estranhas como as que eu queria contar. E que existe tanto, tanto além dos catastrofistas (que é uma corrente muito forte na literatura francófona). Acabei de ler A Parábola do Semeador, da Octavia Butler, assunto do nosso encontro de maio, e já sinto que esse livro vai ficar produzindo ondas de choque em mim por muito tempo. Como se tivesse acontecido de verdade, pensei. E é isso que a literatura faz com a gente: ela acontece de verdade.
O que estou tentando dizer, de maneira bastante desarticulada, é: como é bom estar em companhia e não precisar pensar sozinha.
De novo, deixo o convite se você quiser se juntar a essa turma. Vem que é por aqui.
Encontrar as pessoas me parece fundamental, acho que só é possível criar assim, tendo com quem trocar ideias, sentimentos, belezas. Obrigada a você por estar aqui!
Alice,
puxa, me emocionei demais! Tenho histórias e sentimentos semelhantes, li sua newsletter com o coração muito aberto.
Aprendi e aprendo com muitas pessoas, a gente não está sozinha e, cada vez mais, sinto que as pessoas querem saber, pensar e até mesmo viver diferente. Mesmo que pareça impossível.
Como é bom ter sua companhia nesse meu tempo de vida no planeta 💚🌿