Pedro Vinicio sob a lente climática, uma baleia e outros quetais
Um sonho, Pedro Vinicio e o colapso socio-ambiental, uma expressão em francês, etc.
Nesta edição, no melhor espírito filosofia de bar, trago uns apontamentos sobre as gracinhas do Pedro Vinicio como microcrônicas da vida urbana no antropoceno. Também falo de uma expressão em francês e do futuro do Lápis. Pra começar, vamos de baleias (melhor modo de começar o dia).
Entrega
De tanto falar de baleias, sonhei com elas. Uma mancha escura por baixo da água, vindo depressa na direção da plataforma marítima onde eu estava. Senti medo, um medo enorme, um medo de uma coisa enorme diante da qual eu não teria qualquer chance ou importância. Até que, bem próxima à plataforma, a mancha escura se transformou em corpo de baleia, vindo à tona bem a tempo de vê-la antes que mergulhasse sob a plataforma. Depois voltou, exibindo a cauda.
Às vezes, vinha como onda, outras, como mancha escura, sempre como uma enormidade. Algo que se impõe, aterroriza pela sua dimensão. E que, no fim, não é tão terrível, é a força da vida. Aquela experiência de uma extensão que vai se apresentando, que continua, parece não acabar, e ultrapassa você, aquela sensação foi a mais bonita da minha vida. Acordei sentindo como se tivesse de fato encontrado uma baleia.
O que as charges de Pedro Vinicio têm a ver com a urgência climática?
É provável que você esteja entre as mais de 700 mil pessoas que seguem o Pedro Vinicio no Instagram, e se identifique com as frases rabiscadas ao lado de ilustrações coloridas. As charges de Pedro Vinicio são o retrato de uma classe trabalhadora urbana exausta e insatisfeita. Não tá bom pra ninguém, nessa vida de compensar a solidão/ansiedade/perspectivas sombrias de futuro comprando bugigangas (pra depois consultar o manual “como parar de gastar como um herdeiro”). Enfim: ninguém vai poder se aposentar mas o prêmio de consolação é talvez, quem sabe… pera, não tem prêmio de consolação. Que porcaria de vida é essa? É isso que o Pedro escancara para nós, de um modo que nos faz rir (mas de nervoso).
O que é que tudo isso tem a ver com ecologia, ou com mudanças climáticas? Pedro não fala diretamente desses temas, mas o estado precário em que se encontra a saúde das pessoas (que ele retrata nas charges) é um produto direto do mesmo sistema que está na raiz da crise climática. Puxa uma cadeira que eu trago o cafezinho.
Dois fatores óbvios que contribuem para o estado geral de saúde mental e física da galera, se é que faz sentido separar corpo e mente, são: a alimentação e o cansaço. Quem aí já engoliu um pacote de batatinha frita quando bate a ansiedade bem na hora em que você precisa de concentração para terminar uma tarefa no trabalho? Ou esquentou um prato pronto de supermercado para o jantar por absoluta falta de tempo e motivação? Ora, os alimentos ultraprocessados e contaminados por agrotóxicos, onipresentes na alimentação da população brasileira, estão diretamente relacionados com a crise climática: são produto de um sistema global que em vez de comida a prioriza commodity. Monocultura com uso intensivo de energia fóssil e insumos cujo impacto nos ecossistemas é nefasto.
Não é o seu pacote de Torcida sabor pimenta mexicana que está fazendo a Terra esquentar (embora ele provavelmente esteja fazendo mal para sua saúde — uma pessoa que prefere não se identificar afirma que a lista de ingredientes contém até corante azul), e sim o pacote de escolhas políticas e econômicas que fazem com que uma parte muito significativa do que você encontra para comprar no supermercado seja produzido de uma maneira que traz danos às pessoas e aos outros viventes. Para ter acesso a alimentos de qualidade, é preciso despender tempo e dinheiro (que muitas vezes as pessoas não têm pois: espremidas pelo capitalismo). Além de travar uma luta desigual contra a máquina de propaganda da indústria alimentícia.
Eu já tinha tocando tangencialmente nesse assunto quando falei de Bougez, a música em que Mika ressignifica o slogan do ministério da saúde francês obrigatório em propagandas de ultraprocessados, pisoteando (com passos de dança) o cinismo das letrinhas miúdas:
Agora, vamos falar de cansaço. Levanta a mão quem tem pelo menos três pessoas no seu círculo de convivência próximo que sofreram de burnout no último ano. Tem muita gente precisando trabalhar mais do que seria compatível com uma vida boa de ser vivida, com espaço para condições mínimas de saúde (descanso, ócio, conexão com outras pessoas). Ao mesmo tempo, o trabalho reprodutivo e de cuidado é pouco ou não remunerado, mal distribuído e invisibilizado, apesar de (ou justamente por) ser indispensável para manter em funcionamento a economia. A carga de trabalho dentro e fora de casa está pesando sobre as pessoas e isso tem tudo a ver com mudanças climáticas. São produtos da máquina de acumulação-devastação que transforma pessoas, bichos, florestas, rios, o chão que a gente pisa e o céu sobre nossas cabeças em recursos. É hora de rever a organização do cuidado, tecer outros arranjos entre as pessoas — mas isso é tema pra outro texto.
Então, quando o Pedro Vinicio faz suas piadas, ele está dando voz à angústia e ao cansaço de viver no colapso socio-ambiental. Com grande habilidade, ele nos traz microcrônicas da saúde mental do trabalhador urbano do século 21. Não tá bom pra ninguém — a não ser para aqueles que têm um bunker — e mesmo quem vive ainda de maneira relativamente confortável sabe que isso não vai durar. Pessoalmente acho que, ao nos mostrar que somos tantas as pessoas angustiadas, as charges do Pedro nos provocam: a gente não pode morrer no Instagram.
Vou ali dar uma risadinha na página dele e depois fecho o aplicativo para voltar a escrever.
Sempre quis trazer para o Lápis esta música do Maurício Pereira que acho absolutamente genial, hoje está na ordem do dia:
Imagina cê tá vendo televisão
navegando invisível pela economia
no jornal a notícia tá ali numa foto
essa mínima imagem da ave maria
imagina você tá de frente pra imagem
e se enterga pra ela com adoração
de repente a figura sagrada te chama
acomode-te assim que o sagrado é o feijão
Expressão do dia:
Le monde court à sa perte.
(Às vezes troca-se monde por humanité). Tenho certa antipatia a essa expressão, usada com frequência para falar da crise atual. Acho que, de um lado, ela se presta a discursos conservadores do tipo “o mundo era melhor antes” e, de outro, soa genérica. Ficam faltando muitos pingos nos is. Talvez por isso eu queira esmiuçá-la e ver o que sai. Traduzindo de maneira literal teríamos: O mundo corre em direção à perda de si mesmo. Corre ainda para sua derrota: naquela direção, só é possível perder. Mas também pode-se ler assim: o mundo corre perdendo, deixando escapar tanto (vejo caindo pelo caminho: pessoas, saberes, árvores…). O mundo corre em desperdício.
Até os pernilongos
Jerry Saltz postou um vídeo mostrando muitas maneiras de matar mosquitos e a caixa de comentários pegou fogo, como era de se esperar. Divididos entre os que acharam engraçado, os que se sentiram vingados (normalmente os que vivem em regiões onde há muitos mosquitos e dengue) e os que acharam cruel, ninguém nos 3 scrolls que fiz nos comentários lembrou de dizer que os mosquitos proliferam por causa das mudanças climáticas e devido ao declínio das populações de seus predadores naturais (sapos e pássaros, por exemplo).
Dicas pra ler e ouvir
O decênio decisivo, de Luiz Marques — tem um capítulo dedicado ao sistema global de alimentos e é um livro bem acessível e completo sobre os diversos aspectos da crise climática. Com propostas para a sobrevivência no final :)
O Joio e o trigo, que é um portal investigativo centrado na questão da alimentação e tem uma série de podcasts sobre ultraprocessados, agrotóxicos e neocolonialismo. O podcast mais recente trata de mercados de carbono e é excelente:
Prefere ler? Tem matéria aqui.
Café Lápis Lázuli
O café de junho vai ser domingo, 23 de junho:
10h às 11h do Brasil
15h às 16h de Genebra
14h às 15h de Portugal
O link vai por mensagem separada para os assinantes dos planos pagos.
Notícia importante:
Tomei uma decisão difícil: o Lápis não será mais quinzenal, e sim mensal, pelo menos pelos próximos meses. Estou tocando alguns projetos simultaneamente e prestes a entrar no vórtex que se chama férias escolares (dois meses em que a arte de se desdobrar entre papéis é levada a outro patamar). Para dar conta e não surtar, precisei rever algumas coisas, entre elas a periodicidade com que escrevo aqui. Se surgirem ideias urgentes ou textinhos curtos entre uma edição e outra, vou compartilhar no notes aqui do Subatack e no Instagram, como fiz com esta pequena crônica:
Agradeço muito a leitura! Se gostou desta edição, que tal compartilhar:
Se você chegou aqui agora, para receber as próximas, assine:
Deixo com vocês a iguana de Galápagos nadando. Até julho!
Adorei a edição! ♡