As camadas de uma canção
Nesta edição, decidi falar sobre Mika, olhando de perto para uma das músicas de seu disco novo.
Hoje quero falar do cantor britânico-libanês Mika, e mais especificamente, de Bougez, canção que abre seu álbum mais recente. Que ta tête fleurisse toujours (Que sua cabeça floresça sempre) já me agarrou pelo nome. Que desejo bem escolhido para se distribuir pelo mundo, pois é um desejo de bonança, expresso com delicadeza. É um título polissêmico muito bonito para um momento em que a saúde mental de tanta gente está em frangalhos.
Uma coisa que amo no Mika é como ele entrelaça tão bem as camadas de ser uma música para dançar/ que fala de coisas sérias e difíceis/ ironia/ comentário social irrevente/ que apela para um arcabouço afetivo-sensorial, tudo isso com uma leveza, e uma alegria de viver, que você realmente se pergunta se essa complexidade foi intencional ou consequência da porção inevitável de mistério (provavelmente, ambos).
Em Bougez, co-escrita com Valérie Lemercier, Doriand e Renaud Rebillaud, ele usa como ponto de partida a menção legal obrigatória na França em propagandas de bebidas e alimentos: “pour votre santé, bougez” (para sua saúde, movimente-se). Quem assiste canais de televisão ou escuta rádios francesas é bombardeado com variações dessa vinheta, destinadas a alertar os consumidores sobre a importância de fazer exercícios e comer de maneira equilibrada. À semelhança dos avisos nos maços de cigarro, só que sem explicitar que o produto em questão é nocivo para sua saúde.
Mika faz um trocadilho com santé (saúde), e sentez, o imperativo do verbo sentir, e com as palavras corps (corpo) e coeur (coração), brincando com o sentido duplo do coração como o órgão que fortalecemos ao fazermos exercícios físicos e o coração dos sentimentos (que ele nos convida a pôr em movimento).
Sentez, bougez, sentez, bougez vos corps
Santé, bouger, santé, bouger vos coeurs
Sinta, movimente o corpo
Saúde, movimente o coração
Vai tudo se misturando, numa brincadeira que transforma o que era um slogan burocrático em um convite para sentir e experimentar com o coração, e com o corpo. Mika cria uma festa, para celebrar a alegria de estar vivo, ter um corpo, e um coração capazes de sentir.
Uma festa de resistência.
Ele se dirige às pessoas expostas nos seus raros momentos de descanso às propagandas de ultraprocessados que fazem mal pra a saúde (porém são muitas vezes a opção mais prática pra quem não tem tempo pra nada) — e subverte o sentido da frase que já fazia parte da paisagem de tão batida, expondo a ironia, para não dizer o cinismo, que carrega a menção legal ao fim de cada propaganda.
Afinal de contas, na rotina de quem é espremido pelas engrenagens do sistema capitalista, ter tempo para fazer exercício e cozinhar com alimentos in natura é privilégio.
E mais ironia: pois mexer-se, no sentido de manifestar-se na rua, é uma atitude sujeita a repressão na França do século 21, como vimos repetidas vezes em tempos recentes. Cuidado com o que se pede (à juventude, ao cidadão espandongado na frente da tv depois de mais um dia de trabalho). Se vocês querem movimento, segurem esse rojão:
eles ainda querem
nos obrigar a nos movermos
mesmo se nossos corpos
estão esgotados
eles nem sabem
no que vai dar
vamos nos mover
até o inferno.
Mika não faz nenhuma referência explícita a movimentos sociais ou protestos: não é seu estilo nem seu objetivo. Mesmo assim, sua música se presta a servir de inspiração para o levante de uma geração que se vê emparedada diante da perspectiva de trabalhar até morrer, recuperando o fôlego em bolsões de significado e prazer aqui e ali.
Memórias compartilhadas do pátio da escola…
A força de suas canções vem também de como Mika mobiliza com destreza um arcabouço comum que trazemos da infância. Ele joga com os ritmos e melodias, com a estrutura e a cadência, criando uma canção que parece aquelas que usamos para pular corda ou amarelinha. Vide o refrão:
pour votre santé, allez
faut bouger
Cuja melodia é exatamente a mesma que entoavam meus coleguinhas no recreio nos anos 1980: gorda baleia, saco de areia.
Sabemos que Mika sofreu bullying na escola, ele fala abertamente sobre isso. Podemos imaginar que a mesma melodia (com outras palavras) tenha sido usada para humilhá-lo nos corredores da escola. Eis que tantos anos depois, ele transforma isso em um hino de insubordinação, uma rima de liberdade. Servindo-se, na forma e no conteúdo, da linguagem do opressor: as palavras do slogan obrigatório do ministério da saúde (que adquire um tom irônico levando em conta o contexto sócio-político da França hoje); e a melodia que era usada pelos agressores mirins contra qualquer colega que saísse dos padrões. Vejam que genial.
E lá pelo meio da canção ele traz estas rimas que se encaixam perfeitamente no que em inglês se chama nursery rhyme, que seria mais ou menos o equivalente de uma parlenda em português do Brasil:
Un jour, je m'suis retrouvé aux portes du paradis
J'ai vu Dieu me faire entrer et voilà c'qu'il a dit
T'es pas là pour t'reposer, tu l'as fait toute ta vie
Maintenant que t'es tout léger, tu resteras pas assis
Na minha tradução aproximada (não costumo traduzir poesia, fiz o possível priorizando a métrica e a rima):
Um dia cheguei no céu, quando vi tava ali
Veio Deus abrir a porta, logo ele me diz:
Cê não tá aqui pra descansar, passou a vida assim
Agora que cê é leve não vai ficar à toa aí
Esse Deus que incita ao movimento e proíbe quem vai ao paraíso de se acomodar é divertido: não corresponde à sisudez que você esperaria do Todo-poderoso. Mas também pode ser entendido como um reflexo das autoridades terrenas que querem controlar as vidas e os corpos. Essa dubiedade contribui para tornar a canção tão envolvente.
… e do banco da igreja
Pelas referências espalhadas por sua obra, dá pra imaginar que Mika cresceu numa família cristã praticante (por exemplo, referências ao pecado original em The Origin of Love, e o coro em latim entoado como um cântico religioso). Em Bougez, ele transita habilmente entre o céu e o inferno: assume sua formação nessa cosmologia, sem no entanto se deixar apanhar por ela.
Inclusive, o vocativo que abre a canção, mes bien aimés, que poderíamos traduzir por “caros” ou “amados”, é recorrente em celebrações cristãs e é o que aparece no início das cartas do apóstolo João. O tom solene de pregação do verso inicial já nos faz sorrir:
Amados, estamos aqui
para partilhar o que nos une.
na tv, no rádio
escutais as mesmas palavras:
para vossa saúde: movimentai-vos
Ele contrapõe uma exortação divertida e calorosa ao aviso insosso das autoridades inserido ao final de cada propaganda. Não é escárnio. É amor.
É isso que faz a música do Mika. Ela é um presente, um lugar seguro para se mostrar por inteiro, fonte de força, um espaço para festejar o ato de existir e dar livre passe ao desejo. Amo demais. Vamos dançar?
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06-10/03 (quarta a domingo): Salão do Livro de Genebra. Estarei no estande da Helvetia Edições (data e horário precisos a confirmar)
09/03. domingo: foto das escritoras brasileiras na Suíça (a foto será em Genebra — para receber os detalhes, me escreva lá no Instagram)
Fantástica análise, muito obrigado
Adorei, Alice! Excelente análise. Ansiosa pelo show! Beijos, Carol.