O fim de um ano quente.
Notinhas desde São Paulo: constato que minha cidade natal tem tudo em excesso e que as pessoas existem mesmo, felizmente. Bem viver no campo do possível.
Estou escrevendo no meio de um monte de bagunça num apartamento em Higienópolis. Folhas arrancadas de um caderno com as partidas de stop que joguei com minha filha, caixas de óculos escuros, cabos de computador, um guarda-chuva e uma fita cassete do Thriller que meu marido achou no armário. Como ele cresceu neste apartamento, resgata sempre uma surpresa de um dos armários. Um carrinho matchbox (da época em que ainda eram feitos na Inglaterra, como se lê no chassis), uma lapiseira 0.3, um par de binóculos comprados no Paraguai.
Como disse a uma amiga, quando estou em São Paulo vivo uma espécie de prensadão, um compacto de afeto que mal dá tempo de sentir, é tudo muito. Só consigo desempacotar depois de estar de volta em Genebra. Se é que é possível isso, porque aí já não estou com as pessoas, e elas voltam a ser aquela ficção na minha cabeça.
Estar em São Paulo é isso: ver que as pessoas existem mesmo, que não era um truque da minha imaginação.
São Paulo é um lugar de excessos. Todo mundo aqui vive como equilibrista, alguns em posição muito mais privilegiada que outros. Andando por aí, e olhe que eu ando quase que só pelo centro expandido, não sei como era possível dar conta disso aqui. Aí eu me lembro, era só porque nas horas vagas meus amigos e eu estávamos sempre no cinema, nos espaços culturais, na livraria (aquela, a falecida). Cresci durante aquele período em que o Banco Santos patrocinava exposições grandiosas e todo fim de semana tinha show gratuito no teatro do Sesi, na Paulista. Foi assim que cheguei ao fim da adolescência em São Paulo, e tive uma brevíssima experiência de ser adulta em São Paulo, porque aos 27 já me mudei pra Genebra. É bem estranho olhar pra esse número e pensar, de fato passei a maior parte da minha vida adulta fora do Brasil. E, no entanto, escrevo para o Brasil, vivo com o Brasil na minha cabeça. Ou uma ficção do que seja o Brasil. Isso me assusta um pouco, a possibilidade de ter construído a minha existência sobre um autoengano. Para quem eu escrevo? E de que lugar, que não é nem lá nem aqui?
Colheita no campo do possível
Disse inúmeras vezes neste mês de dezembro que estou vivendo “no campo do possível”: pra justificar um tanto de bagunça, aceitando em parte abrir mão da ilusão favorita (se é que não a única) de controle. Mas no campo do possível também num sentido gerativo: aceitando as chances que aparecem. Admitir não estar no controle também significa ser levada a lugares inexplorados, aceitar o convite para existir fora da ficção na minha cabeça. Nesta estadia em São Paulo, o campo do possível me trouxe conversas marcadas com antecedência ou de última hora, trocas de mensagens com amigos com quem não falava há anos (ou décadas) e o acaso bonito demais de encontrar uma pessoa que foi muito importante na minha vida, justo quando subia a pé a Augusta em direção à Paulista, um lugar por onde passamos, sonhando juntos, incontáveis vezes no fim dos anos 90.
Estamos aqui reunidos
A programação desta viagem foi em grande parte organizada em torno do show dos Titãs. Quando pus os pés na parte interna do estádio e vi a pista, as arquibancadas, aquela gente toda disposta a ouvir música juntos, meus olhos marejaram. Estamos aqui reunidos para celebrar. A música. A vida. Aquilo que a música faz por nós, o que os Titãs trouxeram para todos e para cada um. A trilha sonora da sua vida, como diz a vinheta da rádio 89.
Um show de arena é uma análogo a uma experiência religiosa. Eu acho. Tem ritos, mas sem dogma. Digo que, toda vez que vou ao teatro, saio esperançosa, pois estive em contato com o melhor de nós. Ver música ao vivo é antídoto. Ou me engano? Estou lendo A terra dá, a terra quer de Antônio Bispo dos Santos e pela primeira vez enxerguei essa experiência sob um ângulo diferente, como algo que nos desconecta do mundo e uns dos outros, em vez do contrário. Estou simplificando demais, não é isso o que ele diz, mas tem umas pistas muito interessantes de reflexão no livro que são difíceis de deglutir para nós que fazemos “arte”:
“Os adultos da cidade brincavam de fazer as coisas e outros adultos pagavam para vê-los: era o que chamavam de teatro. Quando a arte vira mercadoria, passa a ser uma brincadeira de não fazer nada” (A Terra dá, a terra quer, Antônio Bispo dos Santos, p.22)
“No quilombo, contamos histórias na boca da noite, na lua cheia, ao redor da fogueira. As histórias são contadas de modo prazeroso e por todos. Na cidade grande, contudo, só tem valor o que vira mercadoria. Lá não se contam histórias, apenas se escreve: escrever histórias é uma profissão. Nós contamos histórias sem cobrar nada de ninguém, o fazemos para fortalecer nossa trajetória. E não contamos apenas as histórias dos seres humanos, contamos também histórias de bichos: macacos, onças e passarinhos” (A Terra dá, a terra quer, Antônio Bispo dos Santos, p.25)
Vire então o ano com este barulho.
Aliás, gostei muito da newsletter da Carol Bensimon* falando sobre nossa relação afetiva com as músicas e por que a gente tem mais dificuldade de se conectar com coisas novas depois de adulta.
A melhor capa de todos os tempos da última semana
Está pronta a capa do Maneiras de temer o fim do mundo:
Estou em ótima companhia, com a colagem feita pela Sandra Acosta e os textos que a Cris Oliveira e o Ronaldo Bressane escreveram para a quarta capa e a orelha. Minha filha fez questão de tirar a foto que vai na orelha. Que coisa bacana a gente fez junto.
A partir do dia 4 de janeiro já vai ser possível comprar o livro no site da Helvetia Edições. Os exemplares chegam da gráfica no fim de fevereiro, mas é vantagem comprar na pré-venda porque o frete é grátis e tem desconto, além de você ajudar a custear a impressão. Vou postar o link para comprar no Instagram assim que estiver ativo, e trarei para a próxima edição do Lápis também.
Obrigada pela leitura! Desejo a você uma ótima virada de ano. Pra algumas pessoas, este último dia do ano traz alívio e esperança, a sensação de fechamento de um período difícil. Pra outras, a alegria de olhar para trás e constatar que foi bacana. Qualquer que seja o seu caso, que 2024 seja um ano com tudo o que você está precisando.
A próxima edição do Lápis chega daqui a 2 semanas, lá de Genebra. Até lá!
*edição mais recente do Nevoeiro, de Carol Bensimon:
Que delícia ler você, sabendo que está perto. Feliz Ano Novo!