Nostalgia machine
Você sabe para que serve uma montanha-russa? Uma edição pós-férias-escolares cheia de música, que é para retomar o ritmo (avestruzes também dançam)
Descobri para que serve uma montanha-russa,
mas ainda não fui capaz de usar.
ou sim, se contar aquela para crianças a partir de 4 anos em que andei com minha filha, que tinha uma única descida quase oferecendo uma curva aberta pra cima, bem curtinha.
Você sabe para que serve uma montanha-russa?
Com a empolgação de quem faz uma descoberta que só é novidade pra ela, vou te contar. Serve pra você despencar, sem correr perigo. Se entregar — tripas, coluna, coração na boca — a uma força, alguma coisa ou alguém que não vai deixar você cair. Serve para você perder o controle, abrir mão dele porque, por três minutos da sua vida, as travas de segurança estão no comando.
Não dá para chegar assim, depois de várias semanas longe do Lápis, sem dar explicações.
Este tem sido um longo verão. Não que tenha feito mais calor do que o que já tem sido usual (temperaturas acima dos 30 graus são frequentes no verão em Genebra há alguns anos), mas foi um hiato comprido nos meus projetos literários porque eu me dispus a ficar à disposição dos outros durante as férias escolares por mais tempo do que seria compatível com um ritmo bom de escrita e aí a avestruz em mim levou a melhor. Agora, é preciso estratégia para arrematar o possível no que resta do ano.
Tenho medo de montanha-russa, mas como eu gosto de uma
Nostalgia machine
Rev it up, whoo!
A máquina de nostalgia serve, segundo o Soft Cell, para te deixar satisfeita, quentinha por dentro. Eu digo que ela serve pra gente consultar tudo que caiu lá do vagão quando a montanha-russa deu seu loop. (no parque onde fui tem uma prateleira com celulares perdidos em exposição, aqueles inutilizados depois da queda.)
Vi Soft Cell ao vivo no festival de Montreux em julho. Como minha expectativa era somente pular ao som de Tainted Love, foi muito melhor do que eu imaginava. O vocalista Marc Almond é um fofo e parecia muito feliz de estar ali. Li depois que ele sofreu um acidente grave de moto uns anos atrás e ficou irreconhecível. O crítico que escreveu no jornal daqui não assistiu ao mesmo show que eu porque: eu não sabia nada sobre eles, não tinha lembranças pra confrontar com eles no dia de hoje. O crítico, sim, e ele não gostou do show. Enquanto isso, encontrei-os onde estavam.
Em inglês quando você quer dizer: vamos chegar a um acordo, um meio-termo, você diz,
I’ll meet you in the middle.
Se você vai pegar a pessoa pela mão e ensiná-la a partir do ponto onde ela está na curva de aprendizado, qualquer que seja ele:
I’ll meet you where you are.
“Meet me in Montauk”, sussurra a Kate Winslet para o Jim Carrey no sonho, antes de desaparecer de suas memórias em Brilho eterno de uma mente sem lembranças. Vi esse filme em Paris, era 2004 e ir ao cinema era o maior luxo que cabia na vida de estudante. Chorei horrores e que eu me lembre nunca assisti de novo. Adorei essa frase sussurrada, o mistério pelo qual deixamos pistas para ir atrás do que demos um jeito de esquecer.
“A magia deixa traços”, Dumbledore diz para o Potter, quando ele pergunta no Engima do Príncipe como vão achar objetos enfeitiçados que eles devem destruir mas nem sabem quais são. Daí que uma boa parte do tempo a gente vai atrás desses easter eggs de si mesma, aquelas pistas que você deixou pra sair do seu próprio escape game.
Eu tinha dez anos e fazia aula de jazz (a dança) no Sesc Consolação. A professora era muito jovem. Lembro dela como uma pessoa que irradiava segurança e doçura em igual medida, o que eu achava desconcertante. Para a apresentação de fim de ano, as meninas do meu grupo participariam de duas coreografias. Uma de colã amarelo gema e outra de rosa pink. Esse colã amarelo me perseguiu a vida toda, porque eu não quis participar da dança. O problema não era o figurino, mas que a coreografia começava com cada menina num saco de pano fino e elástico, dentro do qual íamos nos mexendo, esticando os braços e as pernas, como que procurando espaço para sair, até que, de fato, ficávamos de pé e saíamos do saco para dançar livres. A música era Orinoco Flow da Enya. Eu tinha pavor pavor daquele saco. Não conseguia me fechar ali, mesmo sabendo que a cordinha estava frouxa, sem nó, que estavam tantas pessoas ali em volta para me ajudar se fosse preciso.
Só participei da segunda coreografia, a do colã rosa, que era com The look do Roxette. Acho que eu também me sentia intimidada pela música da Enya, como se ela contivesse uma injunção que eu não era capaz de cumprir, ou não queria (Sail away, sail away, sail away). Mais fácil me mostrar descoordenada em público ao som da vibe bad girl de The Look. Mesmo gostando da música, fui pro palco coberta de vergonha. Esse era o meu figurino.
É o sintetizador
a máquina da nostalgia?
Escrever o Maneiras de temer o fim do mundo foi mais ou menos como sair de dentro daquele saco de pano. E a música foi mais que uma ferramenta de trabalho nesse mergulho nas memórias, foi personagem. Tanto que o livro tem até trilha sonora:
No mesmo dia do Soft Cell teve Duran Duran e, claro, eles tocaram Save a Prayer. Ouvir ao vivo essa música que tem um papel tão importante no livro foi como uma cerimônia de formatura do Maneiras. Diferente da vez em que vi a-ha, ainda durante o processo de escrita, quando estava tudo muito cru e eu tinha tantas dúvidas se seria capaz de contar aquelas histórias. Desta vez, me senti livre.
Salva pelo sintetizador, pois.
AGENDA
De 18 a 22 de setembro estarei no Festival de Poesia de Lisboa. Tem lançamento da antologia Poesia é liberdade (coletânea dos poetas inscritos) dia 20/09 às 17h na Biblioteca de Alcântara. Se estiver em Lisboa, apareça por lá, vai ser uma bela ocasião de encontrar gente que escreve em português e vive em diferentes cantos do mundo.
É isso, gente. Bom estar de volta. Agradeço a leitura, e especialmente a todas as pessoas que falam sobre o Lápis com amigues ou deixam comentários aqui. É assim que o texto vive.