Embrulhado pra presente ou pra viagem
A edição da semana passada chega atrasada, mas bem recheadinha. Tem dinossauro, sorgo, lançamento de livro, Júpiter e outras anotações do caminho.
Errei a data duas vezes hoje. Acertei dia e mês, mas primeiro quis colocar 2021, ao digitar no computador, depois, quando estava escrevendo à mão, automaticamente escrevi 2023. A esta altura em 2021 eu estava começando a rascunhar o Maneiras. Estávamos esperando a vacina contra a Covid e a vida ainda era ritmada pelas subidas e descidas do número de casos e internações, que ditavam o que ficava aberto e qual medida seria tomada em seguida. A esta altura em 2023, depois de uma longa dança em volta dos capítulos que havia escrito, decidi embrulhar pra presente o que já tinha e fazer um livro que ia até ali. A esta altura, hoje, estou de volta em Genebra depois de lançar o Maneiras de temer o fim do mundo em São Paulo. Uma volta completa, de começar até entregar um livro.
Pela janela, vejo duas percas no gramado do prédio vizinho. São parentes dos corvos, inteligentíssimas, com o peito branco e as asas de um preto azulado. A longa cauda brilhante balança para lá e para cá quando elas fazem seus passinhos. Estão de olho em alguma coisa, parecem estar esperando, até que uma das duas se dirige para a cerca viva, além do meu canpo de visão, e a outra acelera logo atrás, trocando os passinhos por um saltitar sobre as duas patas. No breve instante em que ela acelera os passos, reconheço em seus movimentos o parentesco com o tiranossauro. Evidente que nunca vi um tiranossauro, mas as representações que chegam para nós trazem esse andar com o rabo que balança para lá e para cá, o corpo obrigado a pivotar todinho, talvez porque os dinossauros, antepassados longínquos das percas e dos corvos, tivessem a articulação do quadril menos ampla que a nossa.
Uma perca não é um dinossauro, mas saltitando sobre o gramado ela me acorda para a mudança irrefreável onde existe vida.
Isto aqui já pode virar
uma seção da newsletter, porque sempre escrevo sobre
memória
Lembro as coisas como se viessem de muito longe, através da bruma. Como se viessem sei, lá, de Júpiter. As memórias que não conseguem se fixar por aqui, que são imunes à gravidade terrestre vão se refugiar lá em Júpiter, Dá um trabalhão trazê-las de volta, memórias astronautas, viajam no seu próprio tempo, aquele em que um dia não vale um dia, você pode estar velho, já ter morrido, ou estar nascendo ao mesmo tempo. O tempo daqui versus o tempo da Lua. Li sobre isso uma vez, um livro do Carlo Rovelli, e fiz ahhhh, entendi! Agora já esqueci. Só sei que as memórias distorcem, como o tempo entre nós e os confins do sistema solar. Na verdade não faz diferença nenhuma para você ou para mim que se eu gritar, agora, esse tempo do grito não é o mesmo que em Júpiter. Porque nós não estamos em Júpiter, estamos bem aqui e domingo fez 27 graus em Genebra, em pleno início de primavera. Se bem que, seria bom demais se algumas pessoas fossem pra Marte, e o tempo de Marte engolisse a ganância com que depredam, esgarçam, esmagam, estraçalham o bem viver daqui. Você sabe em quem eu tô pensando.
O caminho mágico virou ração de frango
Outro dia eu vi a palavra solastalgia: passei de charrete pela estrada de terra por onde se chegava há muitos anos na casa da minha avó, a estrada continua lá, mas já não a usamos, porque aquelas terras trocaram de mãos e passamos a usar outro caminho. Pois bem, passei de charrete na estrada, A estrada estava, o açude estava, mas as árvores que antes havia fazendo sombra e transformando o caminho numa espécie de corredor mágico, cujo lado de fora só podíamos adivinhar entre as folhas e galhos de muitas formas e tamanhos (e era provavelmente uma continuação daquilo mesmo, ou seja, a mata) — no lugar de todas as árvores agora há: campos de sorgo.
Esta é a lógica em que vivemos: a de arrancar as coisas complexas, esnobando ou, pior, dizimando a possibilidade de abundância, pra colocar no lugar um arranjo homogêneo, pobre em interações e energeticamente custoso de manter. É uma lógica de escassez fabricada.
No bloco de notas do celular, a caminho de casa
Desta vez eu quero manter o estranhamento da chegada:
tentar adivinhar a estação do ano pela cor do céu
notar o fato de que ensaboo as mãos no banheiro público antes de testar a torneira, pois confio que vai haver água.
O estranhamento como condição de possibilidade. Se bem que todo mundo precisa de um chão pra pôr os pés, um espaço onde as ideias se transformem em algo mais tangível, nem que sejam palavras.
Notícias do lançamento
Que beleza que foi o lançamento do Maneiras de temer o fim do mundo lá na Gato sem rabo, em São Paulo. Li um trecho do livro, a Cris Oliveira moderou a conversa, respondi umas perguntinhas, as pessoas também aproveitaram para contar o que haviam achado do livro. Foi emocionante. Já quero mais.
Ganhei o dia todo dia com as mensagens que chegavam. Quase caí de costas quando a Natércia Pontes disse que não tinha conseguido largar o livro até acabar. Aliás, ela não foi a única, ouvi esse comentário com alguma frequência.
O livro segue disponível para compra direto comigo (vai com marca página - é só me mandar uma mensagem aqui ou no Insta), pelo site da Helvetia Edições ou pela Amazon.
Lendo
Deixei uma mini-resenha sobre Distância de resgate de Samantha Schweblin lá no Insta, copiei aí embaixo.
Que livraço. Li prendendo a respiração, o coração aos pulos antecipando a tragédia. Mas a tragédia é insidiosa, ela se disfarça e se veste de outros medos.
Misturando o fantástico a elementos muito concretos deste mundo que envenenamos a galope, e ainda a angústia materna, aquela ansiedade pelo que pode dar errado, Distância de Resgate de Samantha Schweblin merece umas horinha do seu tempo.
Se o fotografei sobre minha barra de saia vermelha e grifei com a caneta dourada da minha filha, não foi por acaso, porque este livro traduz bem até demais o temor difuso que experimento como mãe. Hoje em dia está melhor, mas já perdi tantas noites de sono com isso, o coração acelerando sem motivo, ou por todos os motivos imaginários e os reais também, e aí basta alguém embarcar você numa boa história que sua atenção se ausenta da realidade, o lugar onde habitam os perigos.
Essa sensação de não poder relaxar, meu deus, de precisar ter sempre a criança à distância de resgate, e num lapso pôr tudo a perder, eu a vivi pela primeira vez ainda na maternidade. Tive um pesadelo em que acontecia um terremoto, aquele bercinho de plástico deslizava para lá e para cá sobre as rodas, e eu corria para retirar minha filha dali, mas não alcançava o berço. Acordei aterrorizada, as luzes do quarto acesas, esticando o pescoço para ver minha filha. Chamei a enfermeira pois não conseguia me levantar. Enfim, tudo isso pra dizer que o livro mexeu comigo de forma muito pessoal. Mas não é preciso ser mãe para gostar dele. Recomendo vivamente.
Fiquei sabendo que tem filme, o que achei bacana porque pra mim durante a leitura estava óbvio que daria um thriller potente. Ainda não vi.
Obrigada pela leitura! Se você gostou desta edição, te convido a comentar aqui embaixo ou compartilhar com alguém que poderia gostar também.