Contar tomates e outros contos
Hoje, falo sobre a contagem do tempo, o livro de Nikelen Witter que acabo de ler e sobre como uma demo primitiva pode te ajudar num momento de dúvida.
A arte de contar e deixar tombar
Em 2016, munida do cronômetro no celular, eu contava o tempo de tudo: separar a roupa para lavar, pendurá-la no varal, fazer supermercado, preparar minha filha para ir à creche. Foi assim que consegui ter uma ideia realista do que cabia no meu dia e pude definir o que era preciso renegociar entre meu marido e eu nas tarefas domésticas e o que era desejável simplesmente deixar pra lá (ou, como se diz em francês, laisser tomber - uma expressão que eu gosto porque carrega essa imagem de deixa cair, entregar-se à força da gravidade — ou à entropia, nesse caso).
Depois de esquadrinhar minha rotina, adotei uma maneira radical de organizá-la. Cada tarefa doméstica poderia durar, no máximo, um pomodoro, ou 25 minutos. É meio caricato, mas era exatamente assim: dobrava a roupa por 25 minutos. Acabado o tempo, eu fazia uma pausa e em seguida sentava na frente do computador (na época, eu estava procurando emprego).
O método pomodoro é uma ferramenta de produtividade (ui!) que consiste em alternar períodos de trabalho de 25 minutos com pausas de 5 minutos. Tem esse nome porque o Francesco Cirillo, o cara que desenvolveu essa técnica, é italiano e usava um desses cronômetros de cozinha em forma de tomate.
Uma herança que perdura desse período é o meu mandamento com relação ao jantar dos dias de semana:
“não preparás receitas que demorem mais de 25 minutos.”
Agora, tantos anos depois, estou de novo contando pomodoros, desta vez para escrever. Não uso em todas as sessões de escrita, mas de um modo geral tem me ajudado a conhecer melhor a minha própria dinâmica, e a olhar para meus momentos de escrita com mais intenção. É uma linha tênue para se equilibrar em cima, pois ali bem visível está o imperativo de produtividade, que é inimigo de tudo que é bom na vida. Por enquanto está sendo legal, como um exercício de autoconhecimento.
Pão, pão, queijo, queijo
Estou sob o efeito de Viajantes do Abismo*, de Nikelen Witter, que acabei de ler há dois dias. Ela traduz muito bem, numa ficção científica, a angústia de saber que é preciso agir, mesmo sabendo que, com todos os nossos esforços (caso existam), ainda assim o futuro próximo será muito pior do que está.
Dei um google na Nikelen e fiquei sabendo que o gênero em que ela escreve se chama steampunk: ficções científicas contestadoras ambientadas em um mundo onde o motor a vapor é a principal fonte de energia. A mistura das máquinas a vapor que convivem com outras tecnologias, os nomes de personagem bons de rolar na boca, inventados porém próximos dos que usamos: o tempo todo ela joga com resquícios familiares embaralhados com estranheza. Me faz pensar numa daquelas balas de antigamente, feitas de açúcar de duas ou três cores retorcido. Camadas imbricadas umas nas outras rodando e se sobrepondo.
Eu gostava de ler ficção científica quando era adolescente. Em algum momento, parei de ler, não só ficção científica como também fantasia ou realismo fantástico. Li muito poucos livros que pudessem entrar nessa categoria depois de adulta ( só consigo me lembrar do Ano do Dilúvio de Margaret Atwood e de Demain, les Chats de Bernard Weber). Isso começou a mudar este ano por conta do Filamentos, um grupo de estudo de que faço parte (já falei dele aqui).
Então ler a Nikelen me fez pensar, quando foi que me tornei tão pão, pão, queijo, queijo?
O que me traz de volta aos tomates.
Quero deixar de levar as coisas ao pé da letra e andar com um pouco mais de leveza pela vida. Contando tempo, sim, quando preciso, para poder dar toda a atenção ao que estou escrevendo. Sem parar para ler whatsapp. Sem interromper a escrita para ir no Google — aprendi a anotar no próprio corpo do texto ou no caderno que tenho sempre ao lado: pesquisar x. Nem eu me aguento com toda essa estrutura, mas gente, estava precisando. Porque senão eu ia desmoronar, dispersando energia por cada poro.
Pão, queijo, tomate.
Já posso fazer um sanduíche. Depois, comê-lo.
Quando estiver prestes a desistir, ouça a demo de Take on me
Take on Me, o maior hit do a-ha nos anos 80, me acompanhou durante a escrita do meu livro, que é em parte baseado em memórias da minha infância. Nas minhas pesquisas enquanto escrevia, fui atrás de saber mais sobre o a-ha. Como eu gosto de pegar uma história e puxar o fio pra ver onde dá, acabei topando com uma demo rudimentar de Take on Me. Não se parece nada com melodia animada que não sai da sua cabeça e fez a fama mundial da banda. Fiquei fascinada: desse rascunho mal-acabado saiu o hit que nós amamos.
A demo:
A versão que amamos:
Também é assim com o texto: quem lê o resultado final geralmente não faz ideia dos rascunhos, do processo para chegar ali.
Quando eu estava trabalhando no primeiríssimo esboço do Maneiras de Temer o Fim do Mundo, uma escritora disse aos alunos da oficina de que eu fazia parte: “o trabalho de vocês é produzir um shitty first draft” (ela era dos Estados Unidos).
Depois é depois. Primeiro é preciso fazer existir o rascunho. Foi super importante ouvir isso: a demo de Take on Me e o conselho da professora. Toda vez que eu pensava em desistir, em recomeçar do zero, descartar o que já tinha escrito, eu lembrava disso: tudo começa num rascunho, mesmo que te pareça tosco demais.
*Viajantes do Abismo: disponível aqui.
Pergunta bônus:
Digam-me as suas melhores ideias de coisas para fazer em SP na semana do 18 de dezembro!
Adorei a ideia das anotações pra pesquisas futuras. De fato, esse vai e vem de googladas dispersam muito. E sobre as leituras fantásticas, não as faço, quem sabe um projeto pra 2024? Mais uma vez, é uma delícia ler seus textos.