Propostas para fabricar o futuro (Parte 1)
Notícias do fórum Explore Demain e reflexões sobre a transição para um futuro possível.
Nota: esta edição foi escrita antes das chuvas e inundações que atingem o Sul do Brasil. Todas as palavras que eu havia escrito na adrenalina de ouvir pessoas que estão lutando no front acadêmico/político das mudanças climáticas parecem pura bobagem diante da tragédia bem material que estão enfrentando aquelas cujas casas estão debaixo d’água.
Na fila do supermercado, me pergunto por que é que não está em curso um esforço análogo ao de guerra para reduzir as emissões de gases de efeito estufa o mais rápido possível, adaptar as cidades para o tanto de aquecimento que já é inevitável, e regenerar os biomas que são uma parte importantíssima de qualquer estratégia de sobrevivência.
Parece que estou ligada na tomada: toda carregada, se encostar dá choque. Numa urgência pulsando entre o esterno e a garganta, comecei a escrever um livrinho em francês, que tem a ver com padrões de consumo daqui do norte global. Ele é um filhotinho ainda, aquele bebê canguru, improvável e diminuto, mas espero que logo saia dando saltos por aí.
Fabricar o futuro
Semana passada fui ao festival Explore Demain: a fábrica de possíveis1 aqui em Genebra e assisti a uma mesa redonda intitulada “Entre progresso e limites ambientais: como se tornar ativo?”
Como de costume, a mesa redonda não tinha mesa nem era redonda (de uns tempos pra cá sou interpelada por esse formato, pensando em como ele formata também a discussão). Quando cheguei, atrasada, a economista e ativista Julia Steinberger2 estava terminando sua fala assim:
“O sentimento que predomina em mim é a raiva, porque o futuro diante de nós não é uma fatalidade, ele foi construído para nós como um produto industrial.” (Julia Steinberger)
Julia é responsável por um projeto de pesquisa financiado pelo Conselho de Pesquisa Europeu chamado Post-Growth Deal3. Alegra meu coração saber que existe um projeto com esse nome. A proposta da pesquisa é modelar um cenário de bem-estar equitável para os países do Norte e do Sul global, articular um pacote de políticas públicas e modelar sistemas de abastecimento de energia e alimentos, moradia, saúde, seguridade social; tudo isso levando em conta aprendizados de movimentos sociais. Por fim, articular ações concretas em algumas comunidades. Ambicioso, no bom sentido. Aliás, ambição que não é boa tem outro nome: ganância, que é o contrário do que se busca aqui. O que eu me pergunto é como vão levar em conta cenários específicos de cada lugar.
O subtítulo da mesa era “Como passar do conhecimento à ação num mundo em transição?” A pergunta.
Do que estamos falando?
Transição, aliás, é um termo onipresente. Ainda aparece um “desenvolvimento sustentável” aqui e ali, mas de modo geral parece que esse termo, já insuficiente e problemático há tanto tempo, finalmente está indo embora. Agora cabe a nós que estamos na conversa fazer com que “transição” signifique de fato uma mudança. Afinal, o que é a transição?
Muita gente usa o termo transição ecológica, mas pra mim essa aí é a fantasia que o desenvolvimento sustentável vestiu pra tentar continuar na festa. É vago demais esse termo, apesar de ser usado por muita gente bem intencionada. Por exemplo, o Ministério da transição ecológica na França se ocupa, entre outros assuntos: de desenvolvimento sustentável, meio ambiente, tecnologias verdes e transição energética. Esse termo não explicita a dimensão social da transição e pode com facilidade ser apropriado pelos praticantes de greenwashing.
A transição não se restringe, tampouco, à transição energética — substituir a matriz fóssil por fontes renováveis de energia. Não adianta mudar a matriz energética e manter a mentalidade de crescimento infinito. Estamos de olho: no impacto socioambiental das hidrelétricas e outras instalações e nas condições trabalhistas e ambientais da extração dos minérios necessários para as placas solares.
A transição, pra trazer soluções, precisa articular as relações entre os viventes, promover a redução da desigualdade e ir na direção de duas palavrinhas que ninguém quer falar:
decrescimento
sobriedade.
Afinal, o que salta aos olhos quando analisamos os números é o caráter de exceção do tempo em que você e eu existimos. Na segunda metade do século 20, o processo de transformação de “recursos naturais” em bens de consumo e a queima de combustíveis fósseis que alimenta esse processo aceleraram de maneira inédita. Usei aspas porque não é neutro chamar uma floresta, por exemplo, de recurso, ela só é recurso nessa mentalidade específica que hierarquiza os viventes e considera o ser humano uma categoria pensável fora da “natureza”.
O padrão de consumo a que nos acostumamos (ou nos acostumamos a almejar) é excepcional na história. Roupas novas todo ano, embalagens descartáveis, carro… não foi sempre assim, nem sempre será. E aí é que a conta não fecha e a gente fica na soleira da porta, sem saber como lidar com a questão, porque ninguém quer abrir mão do consumo, muitas vezes conquistado a duras penas e ligado a uma ideia de “compensação/merecimento” no imaginário do capitalismo tardio (quem aí nunca comprou uma caixa de chocolates que fosse como “recompensa” a si mesma depois de uma semana espremida na firma?). Além disso, não se trata de uma questão de escolha pessoal: mesmo que você viva zero waste e plante seus próprios legumes orgânicos, sabemos que é uma armadilha do capitalismo passar a bola pro indivíduo e colocar o problema em termos de “escolha pessoal”.
É uma mudança profunda no sistema econômico e na cadeia de alimentos global que precisa acontecer, o que inclui a redução das desigualdades. Não para que todo mundo tenha tênis do ano, mas para que todo mundo possa viver uma vida digna desse nome. E isso implica, para mim, pelo menos, e bem possivelmente para você também: gastar menos energia, ter menos coisas, consumir menos.
Cécile Renouard, economista e filósofa que também participou da mesa, faz justamente experiências de sobriedade no Campus de la transition4 nos arredores de Paris (objetos compartilhados, optar por não usar calefação no inverno, por exemplo). Cécile forjou o conceito de dégagement joyeux (joyful detachment): se desprender das coisas e liberar espaço em si mesma e coletivamente para viver no que importa de verdade. Sei que a ideia pode resvalar depressa para o privilégio (“aqueles burgueses passando frio porque querem”) mas gostei principalmente de uma coisa que ela disse:
“é preciso cultivar um pensamento prospectivo. Ser astuta e articular perspectivas em ruptura.” (Cécile Renouard)
Achei útil essa fala, porque a gente se vê enredada nas próprias contradições e corre o risco de ficar paralisada nelas. Olha só: não é preciso passar num teste de consistência para ir pro mundo. Você não é um pote de margarina pra seguir padrões de emulsão. Por ser um produto natural, está sujeita a variações de textura. A formação de sedimentos no fundo é normal, basta agitar vigorosamente. Tô falando pra você mas são instruções que escrevi pra mim.
O elefante
Concretamente, como vamos transicionar? Com certeza, não é por um passe de mágica, uma única iniciativa que dê conta de tudo. Uma coisa que ficou evidente durante a discussão é o quanto é preciso experimentar, explorar caminhos.
O elefante que ninguém mencionou ali na sala sem mesa redonda é o fato de que, pode haver todo tipo de iniciativa (de transição?) em curso, no entanto Genebra continua sendo uma das principais praças de trade de petróleo e outras commodities.
“Genebra tem mais dinheiro do que ambição” (no quesito combate às mudanças climáticas), disse o conselheiro de Estado (que é o poder executivo) Antonio Hodgers, em resposta a uma provocação da moderadora, que disse que era preciso haver fundos para a transição. Do que depreendo que o plano (dele) é usar o dinheiro da máquina funcionando para ardilosamente desmontar a máquina, até que não precise mais desses fundos para continuar o trabalho. Confere? É viável isso? (fiquei com vergonha de perguntar em voz alta na sala cheia)
Dinheiro na mão contra o vendaval?
Outra iniciativa que foi abordada na discussão foi o conceito de renda de transição (revenue de transition)5, um auxílio financeiro que possibilite às pessoas (re)aprenderem sua profissão dentro dos limites planetários. Idealizado pela também filósofa e economista Sophie Swaton, está em experimentação aqui na Suíça e na França. Quando a moderadora (não anotei seu nome e não está no site do evento) perguntou a Sophie quais serão em sua opinião as profissões de amanhã, ela respondeu:
“acredito que vamos precisar nos voltar para o campo. Da forquilha ao garfo (de la fourche à la fourchette), todas as profissões envolvidas serão cruciais.” (Sophie Swaton)
“E também tudo que tem a ver com saber tradicional sobre plantas, seus usos de cura”, acrescentou.
Minha cabeça foi imediatamente para os protestos recentes dos agricultores Europa afora, para a quantidade astronômica de pesticidas usados no Brasil, para os efeitos nefastos dos alimentos ultraprocessados na saúde e a incidência crescente de câncer de cólon retal em pessoas com menos de 50 anos. (Minha mente funciona como um Tik Tok, só que mais depressa, as imagens se sobrepondo. A sua também?)
Da forquilha ao garfo, a transição está em jogo em todas as etapas.
No próximo episódio…
No dia seguinte, assisti a uma conferência chamada Aterrisagem de urgência, em que o compositor e diretor Jean-Pierre Seyvoz e o historiador Alan Lebecque contaram sobre o coletivo S-composition e o consórcio Où atterrir, que realiza um trabalho de pesquisa-ação inspirado no livro de Bruno Latour. Mais sobre isso na próxima edição do Lápis, pois esta aqui já ficou bem comprida.
O Lápis Lázuli não é uma newsletter sobre mudança climática mas, como vivemos tempos extraordinários marcados, justamente, pela mudança em curso, é inevitável que eu fale mais diretamente sobre isso em algumas edições.
Sábado, 11/05 às 11h (horário de Brasília) / 16h (horário de Genebra), acontece o encontro mensal dos apoiadores do Lápis Lázuli. É como um café entre amigues, um bate-papo para falarmos mais sobre temas que apareceram aqui na newsletter ou outras coisas que vocês quiserem saber. Quem tem assinatura paga receberá os detalhes em breve.
Aliás, falando em apoio:
Consegui finalmente parametrar corretamente os planos pagos em reais aqui no Substack. Se você gosta do Lápis Lázuli e puder/quiser fazer uma assinatura paga, estará me ajudando a continuar escrevendo.
Você também pode me apoiar de maneira pontual, me pagando um café:
E, claro, pode comprar meu livro com entrega no Brasil, na Europa ou na América do Norte clicando nos links abaixo ou me mandando uma DM:
Se você chegou até aqui: ufa! Agradeço a leitura, de coração. Sentiu-se mobilizada, ou se interessa em saber mais sobre alguma das iniciativas mencionadas? Convido você a compartilhar esta edição e/ou deixar seu comentário aqui embaixo.
Não curtiu tanto este formato? Prefere divagações sobre o dia a dia? Conta pra mim também. Vocês são a riqueza deste trabalho.
O texto vivo pode ser um espelho que revela e intriga, um trampolim para brincar de voar ou uma rede para dar colo quando a gente precisa. Em todos esses casos, quem o faz viver é quem lê. Então, de novo, obrigada!
Até breve!
Julia também é professora de economia ecológica na Universidade de Lausanne, relatora do relatório de 2022 do IPCC (grupo 3, Adaptação) e militante adepta da desobediência civil. Uma lista de publicações dela pode ser acessada aqui: https://applicationspub.unil.ch/interpub/noauth/php/Un/UnPers.php?PerNum=1050371&LanCode=8&menu=pub
https://campus-transition.org/
Sobre o conceito de revenue de transition:
Em francês: https://artias.ch/wp-content/uploads/2022/01/Artias_Dossier_Janvier2022_Revenu_transition_ecologique.pdf
Em inglês: https://www.greeneuropeanjournal.eu/for-an-ecological-transition-income/
Que texto potente, repleto de provocações, reflexões, inquietações. Cada vez mais precisamos olhar pros nossos problemas com lucidez; e esses relacionados às questões ambientais deveriam ser prioridade. Obrigada por ser uma voz nesse tema.