Com intenção, porém sem controle
Versos escritos sem perigo têm outro nome. Idem para o desenho.
Acabo de voltar do Festival de Poesia de Lisboa. Estar com pessoas que leem e escrevem para festejar a escrita é sempre a melhor parte da vida de escritora. Conheci pessoas talentosas que já são queridas, encontrei alguns amigos e gente que eu só conhecia pela internet, entre elas a Angélica Freitas, que eu admiro demais e com quem queria conversar há tempos. Ela e a Juliana Perdigão apresentaram uma performance chamada Radiorama, em que combinam um radinho de pilha, um sintetizador e os cadernos em que a Angélica está escrevendo numa sessão de improviso. Vou chamar de experimental, porque as pessoas costumam chamar assim a poesia que é feita tomando risco, apesar de eu achar que é assim que a poesia é. Versos escritos sem perigo têm outro nome.
Faz tempo que venho pensando em voltar a desenhar, fazer mais trabalhos visuais. Criança e adolescente, eu fazia um pouco de tudo: além de escrever, pintava, fazia esculturas, imaginava programas de rádio e desenhos animados. Se tivesse Instagram ou You Tube naquela época eu nem sei, acho que ninguém me segurava. Não bem retraçar o caminho, mas fui deixando essa expressão visual de lado e fiquei só com a escrita, guardadinha nos meus cadernos. Depois duvidei dela também e foi assim que só publiquei meu primeiro livro aos 42 anos. Parece que este está sendo um ano de estreias, porque esta ida ao Festival de Poesia de Lisboa também foi a primeiríssima vez que viajei sozinha desde que me tornei mãe, e olha que lá se vão onze anos. Lá, além de encontrar muita gente bacana e ler e ouvir versos, também participei desse ateliê de desenho e interpretação poética com a Teresa Ruivo.
Começamos com desenho cego: desenhar sem olhar para o papel. Escolhi fazer a Ponte 25 de Abril, que passa bem ao lado da biblioteca. Depois, fiz o portão do jardim. Como a Teresa apontou, muita gente tem dificuldade em seguir com a mão o traço daquilo que está vendo, e decide, em vez de seguir as linhas, desenhar aquilo que está vendo. A pessoa faz uma árvore sem olhar para o papel, mas ela faz uma árvore abstrata, com as coisas que uma árvore precisam ter: folhas, galhos, talvez frutos. Quem sabe até uma árvore do mesmo tipo da que ela está vendo. Isso é diferente de desenhar aquela árvore, tentando seguir seus traços. Quando estou desenhando às cegas, posso sentir uma espécie de espaço nevoento, um caminho que não domino, mas mesmo assim percorrido por aquela pequena descarga elétrica carregando informação, que segue dos olhos até o cérebro e de lá até a mão. Quando faço desenho cego, lembro dos seres que não chegam a ter visão propriamente dita, mas que são capazes de perceber luz e sombra (como as planárias).
Seguro a mão que desenha como seguro textos nos meus arquivos. Foram só duas horas de prática, mas deu para notar que é preciso soltar, deixar o traço ser traço, aceitando que ele não é o que está na sua cabeça, nem diante dos seus olhos. Existe intenção, é claro, mas no passo entre a intenção e o controle perde-se o desenho.
Naquele mesmo dia, Danielle Teixeira disse no lançamento do seu livro A palavra nada (Helvetia, 2024) que antes ela tentava explicar (n)os poemas, queria que as pessoas entendessem. E aos poucos, percebeu que a gente não precisa saber ou entender.
A intenção deixa espaço para a expressão, o controle estrangula.
Solta a própria mão, Alice, os desenhos parecem sussurrar.
Anotações de outro dia
Eu estava levantando a persiana da janela no quarto da minha filha, depois que ela saiu para a escola, sentindo uma culpa difusa por não estar escrevendo nestes dias tão absurdos. Diante de tudo o que está acontecendo, fico meio __________ (qual era a palavra que eu queria? Ela fugiu quando saí do quarto e meu marido perguntou se eu queria outro café). Seja. Diante de tudo tão escancarado, da fumaça no Brasil, das homes dos jornais que ainda tratam o colapso climático como um assunto e não como o próprio enquadramento a partir do qual ler e agir no mundo, eu me sinto dépassée, como se diz em francês: ultrapassada, não no sentido de obsoleta, mas como se uma avalanche tivesse passado por cima e adiante e pelos lados e não consigo alcançar um ponto de onde possa ver e ter o que dizer. Mas aí, justamente por isso é preciso escrever, mesmo se sentindo [desnorteada] [desorientada] [atordoada]. (Vou ficar com atordoada. Era essa a palavra que perdi, quando meu marido perguntou do café.) É preciso escrever em estado de atordoamento, registrar o hoje, as coisas pequenas que parecem não ter lugar quando se está diante de um problema tão enorme, a desolação que pode sempre ser maior, e também o absurdo de ter alegrias em meio ao colapso (alguém que te prepara café com esse carinho todas as manhãs).
Composteira
(Acho que vou passar a chamar assim esta seção, também conhecida como “Dicas de livros/podcasts etc” ou “O que ando lendo e ouvindo”)
Perfil não sente calor:
Como sugere o título, este episódio do Calma Urgente discute a representação da urgência climática nas redes sociais e as consequências do que eles chamam de “arrobização”, o ativismo dentro do algoritmo. Alessandra Orofino conta como no festival de cinema de Veneza, apesar da onda de calor, todo mundo posava para foto como se estivesse tudo bem. Pisa no tapete vermelho e segue o barco, porque: “perfil não sente calor”:
“(…)Um espaço que foi muito mais pensado para ficar bem na foto do que ficar bem fora dela. (…) a gente está mais preocupado em como a gente aparece na foto do que com o que de fato está acontecendo em volta dela. […] [O calor] é o mais fácil de a gente ignorar num universo em que a gente vive muito mais o virtual e o terreno da representação e da performance do que o terreno da “fisicalidade” mesmo.”
Alessandra Orofino, no episódio Perfil não sente calor do podcast Calma Urgente.
Fica aparente então que a gente precisa não só agir fora das redes, mas também parar de agir fora das redes pensando antes de mais nada em como vai parecer nas redes. Dá para desenrolar bem mais o assunto e espero ter a oportunidade de ter conversas offline a respeito. Enquanto isso, vou gostar muito de ler vocês aqui, tem passado essa questão aí na sua cabeça?
A árvore mais sozinha do mundo de Mariana Salomão Carrara
Adoro a Mariana Salomão Carrara, já falei disso por aqui. Este novo romance dela, publicado pela Todavia, provoca em mim um sentimento de reverência. O modo como ela maneja a escrita, as escolhas estilísticas, a integração do que veio da pesquisa de campo. A gente não vê as costuras, vê só o comprometimento e a maturidade literária que a pessoa precisa ter para conseguir fazer um livro assim. Palmas para a Mariana. Agora, preciso avisar, em tempos em que tanta gente está à flor da pele: é triste, muito triste.
Este artigo da Adriana Lippi sobre luto climático:
“Falo sobre luto ecológico porque acho que nomear as coisas pode nos ajudar a entendê-las. Não para adotar como um rótulo e por na bio do seu perfil, mas para gente entender que são processos e não destinos nossos.”
Adriana Lippi, no artigo Luto climático: como continuar quando o futuro parece perdido?1
Esse último parágrafo do texto da Adriana carrega duas ideias que acho importante destacar. Primeiro, aquilo que acabei de falar sobre performance nas redes sociais. Se a tentação de colocar “em luto climático” na bio for muito grande, acho que o que essa reflexão permite é reformular a frase para traduzir onde cada pessoa se situa nesse processo. Vou batendo sempre na mesma tecla, mas a coisa é essa: não vivemos no abstrato. As práticas possíveis são todas situadas, específicas de cada contexto. Que nos leva à segunda ideia preciosa nesse parágrafo que destaquei: a nossa maneira de existir e se entender como sujeito no colapso é um processo, sempre em transformação, até porque o colapso transforma continuamente as interações entre os viventes e o mundo no qual e do qual vivemos.
Por hoje, encerro aqui. Obrigada pela leitura e até breve!